sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Em busca do nosso "pulo do gato"

Há uma fábula que dizem ser de Minas Gerais, no Brasil, que reza o seguinte:

“ A onça vivia admirada com a agilidade do gato. Curiosa, resolveu pedir-lhe umas aulas. O gato aceitou e começou a ensiná-la. Achando que já havia aprendido tudo, a onça resolveu num belo dia fazer do gato a sua refeição, mas este pequeno felino, com muita habilidade conseguiu escapar-se das suas garras. Dias depois, ao encontrá-lo, a onça perguntou:
- Pois é, o compadre não me ensinou aquele pulo!- ao que o gato, muito esperto respondeu:
- É ele que me mantém vivo, comadre!”

Comentário: Nas relações entre as pessoas, num mundo onde a lei da selva quando não nos faz abertamente frente está, contudo, sempre latente, é muito comum depararmo-nos com o chamado “pulo do gato”. Na verdade, na vida quase sempre o mestre nunca ensina tudo ao aprendiz, porque receia algum dia perder o seu lugar. O “pulo do gato” é assim aquele conhecimento especial, aquele específico know how que, tal como a fórmula da coca-cola, mais ninguém domina ou dominámo-lo com uma habilidade especial e que, por conseguinte, deve constituir o nosso trunfo (dos indivíduos e dos países) para concorrermos com sucesso num mercado cada vez mais competitivo.

É muito comum ouvir-se dizer que o angolano é bwê vivo. Não sei se se trata de uma espécie de autismo nato, que talvez faça com que nos ouçamos a nós mesmos dizer sobre nós que somos bwê vivos. Se isso não for verdade e se for verdade que são os outros, os não angolanos, que dizem que nós somos mesmo bwê vivos, então um quêzinho de verdade sobre a tal nossa vivacidade deve existir.
Agora! Somos vivos em quê? Somos vivos porquê? A nossa vivacidade é mesmo o quê?
Estou a espalhar esta rajada de perguntas para ver se não fica nada sem se esclarecer sobre esta coisa da nossa vivacidade. Porque vivacidade não pode ser habilidade para baldar os outros. Vivacidade não pode ser habilidade para desmarcar, ou se desmarcar facilmente do que quer que seja. Vivacidade tem de ser uma certa flexibilidade na forma de ser e de estar que habilita a pessoa a vencer, a triunfar, a convencer, a persuadir os demais, a conquistar a simpatia dos outros, ou a fazer com que estes, encantados connosco, se deixem liderar por nós em determinado contexto em que estajamos inseridos.
A nossa vivacidade não deve significar capacidade de fazer rir os outros. Capacidade de furar. Capacidade de desenrascar. Pode implicar tudo isso,mas não deve resumir-se a apenas isso.
Vivacidade é pragmatismo que nos permita adequarmo-nos sem dificuldade à variação dos contextos, dos momentos e dar a volta por cima nas circunstâncias aparentemente complexas e difíceis de se contornar com sucesso. Vivacidade é desenvolver habilidade para sobreviver primeiro, viver depois e vencer, no culminar desta jornada finita que é a vida. É este o sentido prático e útil que damos a essa tal qualidade de se ser vivo, de se ter vivacidade.
E parece que a história nossa, tanto a recente como a mais remota está repleta de casos de extrema dificuldade para as pessoas, para os nossos povos diversos que hoje se comungam no espírito de um só, na nação que se constrói.
Durante cerca de cinco séculos de colonialismo e brutal escravatura sobrevivemos ao risco da extinção. Ao longo de vinte e sete anos a contar dos dias que antecederam a independência do nosso país, sobrevivemos às guerras que incendiaram as nossas cidades e campos. Sobrevivemos à bantustanização austral pretendida pelo regime do apartheid. À ameaça de desintegração política e administrativa do país. Ao flagelo generalizado da fome. Ao ataque implacável das doenças tropicais endémicas.
Entretanto, até nos momentos mais trágicos, de maior desespero, conseguimos manter aberta uma janela para o nosso sorriso; estendida a mão solidária para com os zimbabweanos, namibianos, sul-africanos, timorences, saharauís, palestinianos, e tantos outros, ao longo de todos estes anos; a esperança continuou congelada no olhar brilhante das nossas crianças, atenuando o desespero estampado nos rostos dos seus pais.
E a noite longa manhã se fez, na paz que com muito desprendimento dos nossos próprios egoísmos procuramos consolidar.
Foi assim que se temperou o nosso aço. Foi assim que conseguimos contornar a implosão social que, como tiro de misericórdia num corpo esvaído pelo cansaço da guerra, os nossos algozes de fora e de dentro se aprestavam a fazer despoletar, depois de não terem podido desmantelar a estrutura que, apesar de todos os tipos de investidas experimentados, mantinha de pé o país. Deste caldo de vicissitudes algum paladar singular teria que resultar. E aí estamos nós!
Falta-nos agora desenvolver e aprimorar uma, duas, três ou mais habilidades especiais de bem fazer algo, para que nos tornemos mais úteis aos outros povos que connosco transaccionam. A valia de cada povo, como de cada pessoa, está exactamente na justa proporção em que detenha saber, habilidades, virtudes, de que necessitem os demais para viverem e progredirem.
Angola tem uma natureza pródiga. É preciso que a conheçamos cada vez melhor, como ninguém, para que possamos transformá-la em benefício nosso e do mundo.
O nosso “pulo do gato” não deve parar na destreza como manipulamos o gatilho das armas, ou como dominamos as técnicas de guerra em contextos tropicais. Não deve parar nas fórmulas do kimbombo, do macau e do kaporroto. Não deve parar na receita artesanal do pau-de-cabinda. Não deve parar na fórmula caseira do gelado de múcua. Não deve parar na habilidade irresponsável do candongueiro para saracotear pelo tráfego congestionado de Luanda. Não! Nós temos génio para muito mais.
É preciso encaminhar este génio pelas avenidas do conhecimento. É preciso ensiná-lo a manusear os instrumentos de pesquisa da realidade e da natureza que nos rodeia, que certamente muitas descobertas surgirão, muitas formas novas de melhor se fazer sairão das mãos dos nossos pesquisadores.
É preciso espalhar pelo país a escola, o instituto, a universidade, o microscópio, a pipeta, o computador, o osciloscópio, o laboratório, o centro de pesquisa, o centro de estágio, o centro de testes, o observatório, o conservatório, o lugar onde se sistematize o saber, o conhecimento da física, da química, da matemática, da biologia, da botânica, da biotecnologia, da geologia, da electrotecnia, da cibernética, da sociologia, da história da vida e da natureza em toda a sua grandeza, para que possamos transformá-las com conhecimento de causa e efeito.
Temos que investir tecnicamente naquilo em que julgamos ter potencialidade, devido à natureza que nos rodeia ou à nossa própria natureza humana, de angolanos. Investir, por exemplo, na nossa proverbial hospitalidade e paciência, na hotelaria e no turismo, na gestão dos nossos abundantes recursos hídricos, na habilidade nortenha para o comércio, na mestria oriental no artesanato, na agricultura do planalto, na pecuária sulana, na indústria da madeira e do mobiliário, no saber aeronáutico dos nossos pilotos civis e militares, na joalharia que pode sair dos nossos diamantes e pedras semi-preciosas, na lapidação do mármore e do granito, a indústria pesqueira e seus derivados, na exploração do petróleo e na petroquímica, na preparação de tropas e polícias, enfim, na electrónica e informática precoces dos nossos miúdos que bem dominam os video-games.
Se já somos algo bons nisso, ou se sabemos que Deus encheu-nos o país de todos esses recursos naturais, invistamos na aquisição e no desenvolvimento de “saber fazer” para melhor valorizá-los, criando coisas que satisfaçam mais plenamente as sempre crescentes necessidades humanas. E sabemos que estas não têm fronteiras! É aí onde reside o fazer a diferença. É ai onde o gato pula para o lado onde a onça nunca esperou e escapa ileso, são e salvo.
Só por via dessa aprendizagem, desse saber fazer bem e diferente, os nossos pulos serão mesmo de gato e nunca de rato feito chico-esperto.



Roderick Nehone

06/03/2007

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